segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Rindo da minha morte(ou melhor, do meu velório)

Devo ao meu professor de um curso do doutorado as boas risadas que dei esta madrugada. Antes que alguém pense maldades, ri sozinha, dormi, ou melhor, tive insônia sozinha. Minhas risadas não foram por uma (im)possível presença do professor, mas por causa de coisas ditas na sala de aula, quando discutíamos Freud (que, aliás, deve ter se remoído no túmulo com meus pensamentos noturnos. Não, meus pensamentos nada tiveram a ver com sexo, embora, admito, tenham tido a ver com minhas compulsões).Discutir Freud, por si só, já é um prazer, porque mesmo que não concordemos com as suas idéias, ou com as interpretações que nós, pobres mortais, tentamos fazer delas, sempre surgem coisas geniais nessas discussões. Mas minhas risadas não foram pela minha (ausência de) genialidade.Primeiro ri de minha compulsão por vacinas. Não exatamente por vacinas, mas por injeções. Esta compulsão, na minha ignorante visão, poderia referir-se à compulsão a repetição de experiências traumáticas de que Freud falava. Segundo meu professor, não, as compulsões a repetição de experiências traumáticas não tinham o efeito pedagógico que eu lhes atribuía, na minha ignorância e, portanto, minha compulsão por injeções não se enquadrava nessas compulsões. Nem por isso elas eram menos compulsivas. Ou menos cômicas para mim lá pelas três da madruga.Bom, vamos a elas: aos 11 meses mais ou menos eu me tornei uma criança bastante doente. Adquiri bronquite alérgica graças a uma empregada descuidada. E por isso tive bronco-pneumonia algumas vezes. Aprendi a andar no hospital e, nas minhas tardes de doente desocupada que não se sente à morte, dediquei-me às obras de caridade. Seria uma precursora do Patch Adams, se ele não fosse muito mais velho do que eu. Como as duas coisas, caridade e Patch, se associam na minha enfermidade? Simples: eu, na beleza de minha pouca idade, visitava os doentes, caminhando cambaleante como fazem os bebês. Quantas daquelas pessoas que visitei não ganharam dias extras de vida só por divertir-se com uma guriazinha desobediente que não ficava no leito? Bom, por força das circunstâncias, via-me obrigada a tomar 3 injeções ao dia o que, cá entre nós, não é fácil para uma criança. Quando eu já sabia falar, para fugir das injeções, além de me esconder embaixo da mesa da cozinha, eu pedia para me deixarem morrer. Isto com uns 3 anos. Dramática, não? Vinha daí o meu histó(é)rico pavor de agulhas e seringas. Uma vez, precisei tirar sangue para um teste de alergia. Com muito pavor(da minha parte), o cara do laboratório tirou uma ampola de sangue. Tudo bem(?) até aí, mas ele não me avisara que deveriam ser duas ampolas. Ao vê-lo encaminhar uma segunda ampola, minha veia simplesmente fechou e dalí não saiu mais uma gota de sangue. E olha que ele nem tirou a agulha da veia!! Para piorar, ele cometeu uma barbeiragem e vazou sangue da veia por dentro da pele. Resultado: ficou tudo roxo e eu fiquei umas três semanas parecendo uma viciada desastrada.Bom, acho que corria o ano de 1995, quando eu decidi que deveria vencer esse estúpido medo. Afinal, dias antes eu apresentara uma palestra sobre Sandro Botticelli com grande sucesso e uma palestrante de renome não pode temer um objetozinho tão insignificante. Calma Ego, volte ao normal!!E a oportunidade se apresentou sob a forma de vacina anti-tetânica: isso, vou vacinar-me!! Afinal, naquela época eu ainda sonhava com uma prole, e toda mulher com tais sonhos deve vacinar-se contra tétano! Fui lá... entrei na fila e, quando chegou minha vez, respirei fundo, dei meus dados, fechei meus olhos, olhando para o outro lado e... não doeu nada, apenas uma picadinha e, sinceramente, já passei por coisas mais dolorosas na vida. Vencido o medo, nasceu a compulsão. Comecei a vacinar-me sempre que possível. Hepatite (e, hoje, eu nem lembro para que hepatite era a vacina!), e uma outra vacina que mulheres em idade fértil devem tomar, rubéola ou algo parecido. Detalhe: o governo havia determinado que apenas mulheres de até 29 anos deveriam tomá-la, e eu já havia completado 30. Durante dias eu me revoltei ao ver a propaganda: como eu não podia tomá-la??? E se eu engravidasse? O que seria do(s) meu(s) filho(s)? [O fato de que na época eu era solteira, sem namorado, noivo, paquera, gabiru (como disse Artur da Távola) nem me abalava na minha convicção do meu direito inegável e inalienável à vacina, quase comecei um movimento em prol das sem-vacina]. Quando fui à UERJ antes do fim da vacinação e encontrei uma mocinha da enfermagem sozinha, abandonada às moscas, à espera de uma mulher de até 29 anos para vacinar, não titubiei: fui até lá e a convenci a me vacinar!! Aliás, como eu era relaxada com as outras doses da anti-tetânica, eu tomei a primeira dose pelo menos 3 vezes. Quase me imunizei contra a vacina. Hoje eu dou graças a Deus de naquela época ainda não existir a campanha de vacina de idosos contra gripe, caso contrário eu teria dado um jeito de vacinar-me também, mesmo me faltando trinta anos para a idade mínima! Até posso ver a cena: a fila imensa de velhinhos (sim, porque velhinho adora fila. É um momento de encontrar os amigos que ainda estão vivos, falar[mal] dos que já morreram, falar de artrite e artrose, reumatismo, netos, bisnetos etc...) e eu lá, misturando-me a eles para tentar passar desapercebida. Ou ainda: não existem as filas preferenciais? Em tese, estas filas são para minorias, não é mesmo? Idosos, gestantes, deficientes. Como entre eles eu seria a minoria, eu poderia exigir uma fila preferencial para mim. Furaria a fila na cara dura. Depois, se morresse por causa da vacina, iria direto para o inferno! Mas, chegando lá, encontraria um fã clube, com direito a faixas na recepção!!Bom, aqui acaba a saga das vacinas para começar a da morte. Eu não tenho medo de morrer. Não mesmo! O dia em que tiver de morrer, morrerei em paz. Mas desde pequena fui solidária à desgraça alheia. Por isso, aos dez anos doei minhas córneas(ou, retificando: tornei-me candidata a doação). Detalhe curioso: como eu era bem menor de idade, meu pai teve de assinar. Ficou todo orgulhoso com o meu gesto. Mas não doou suas córneas. Legal, né, fazer caridade com as córneas alheias. À época, eu tinha uma visão perfeita. Hoje, sou míope como uma toupeira (embora eu nunca tenha visto uma toupeira de óculos para me provar tal ditado). Fiquei imaginando esta madrugada a fase final da cirurgia que transplantou as minhas córneas para um pobre cego pobre. Não, eu não repeti o pobre por acidente. Lá estão o cego vendado com ataduras, a enfermeira que as retirará, a médica que examinará os olhos e... uma faxineira com um esfregão de ponta-cabeça (acho que é assim que se escreve ponta-cabeça). A enfermeira tira as ataduras e o cego se vira para a faxineira e diz ao esfregão: QUE MARAVILHA, DOUTORA, VOLTEI A ENXERGAR!! Já fora do hospital, ele caminha, confiante, e... dá um baita encontrão numa placa de PARE. Depois de esperar horas na fila do Souza Aguiar para engessar o nariz quebrado, ele pega um ônibus e... vai parar numa favela, dentro da qual seis bandidos armados até os dentes anunciam o assalto. Detalhe: o ônibus era da favela do jacarézinho e o ex(?)-cego morava em jacarepaguá. Por fim, o cego chega à conclusão de que precisa de óculos. Vai ao oftalmo e descobre que ao morrer, eu tinha 10 % (isola, toc, toc, toc) de visão no olho esquerdo e 30 % no olho direito. Detalhe para encerrar o drama do pobre ceguinho pobre: o óculos vai custar três meses de pensão.Mas deixemos minha miopia e meu ceguinho pobre pra lá. Não contente em doar minhas córneas deficientes, na UERJ, durante uma UERJ Sem Muros (sempre ela, foi numa UERJ Sem Muros que comecei a minha compulsão por vacinas, deviam pôr um cartaz proibindo a minha entrada: cuidado! compulsiva a vista!), eu doei(novamente retificando: tornei-me candidata a doação, afinal, ainda não tiraram nada meu... bom, teve um fulaninho que tirou uma tal de virgindade, mas já caducou o prazo de reclamação...) meus órgãos, minha pele, meus ossos. Fiquei, então, imaginando meu enterro, essa madrugada: depois de ser descarnada pelos médicos, sobraria, apenas, a minha caveira sem olhos, nem pele, nem carne, tampouco com dentes ou cabelo (sim, porque já deve haver transplante de couro cabeludo e, se ainda não houver, haverá até a minha morte). Então, me enterrarão num caixão de bebê e, para melhorar a minha aparência, colocarão em mim olhos de vidro, uma dentadura e uma peruca de fios sintéticos. Não é uma imagem engraçada: uma caveira sorridente, com olhos verdes e cabelos ruivos (meus últimos desejos)?É, a morte pode mesmo não ser tão assustadora se a encaramos com bom humor. Freud deve estar orgulhoso de mim. Meu professor, nem tanto... Bom, devo dizer que o curso acabou, mas a mania de rir sozinha na cama de madrugada, não!

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